Martinho da Vila de farda, na época em que era escrevente do Exército e trabalhava no Palácio Duque de Caxias, no Centro do Rio, mas já ganhava reputação como sambista. Caetano Veloso em um passeio de moto com Maria Bethânia, em Ipanema, logo após voltar do exílio forçado em Londres com o disco “Transa” na bagagem. Rita Lee aos 27 anos, posando para um ensaio de fotos na véspera de um show histórico no festival Hollywood Rock. Raul Seixas pedalando sua bicicleta descalço em meio ao trânsito do Rio.
A Editora Globo tem uma sala de 120 metros quadrados no subsolo de sua sede, com mais de 13 milhões de fotogramas, guardados dentro de 25 mil pastas armazenadas em 27 arquivos deslizantes (estantes tão grandes e pesadas que precisamos de manivelas para movê-las sobre os trilhos). São imagens acumuladas em quase um século, desde que o jornal O GLOBO foi fundado, em 29 de julho de 1925. Diariamente, a equipe do Acervo explora esse manancial de histórias, à procura de cliques antigos ainda não inseridos no banco digital. O objetivo é “desenterrar” registros valiosos e publicar no Blog do Acervo e no perfil do Acervo no Instagram, contando o contexto por trás dessas imagens.
Durante as buscas, volta e meia a gente encontra retratos de uma tal de Música Popular Brasileira (MPB) enquanto jovem, ainda em formação, cheia de colágeno e muito futuro pela frente. Lendo reportagens publicadas pelo jornal na época de cada foto — todas as edições do GLOBO estão digitalizadas no site do Acervo —, descobrimos o que a imagem muitas vezes não conta. São capítulos da identidade nacional.
Martinho da Vila, por exemplo, não se sentia bem dentro daquele uniforme verde oliva e estava doido para viver só do samba. Caetano voltou do exílio ansioso para pular o carnaval em Salvador, enquanto Bethânia só pensava em sua primeira turnê fora do país. Marisa Monte já falava como uma sábia aos 20 anos de idade. E Raulzito andava de bicicleta para protestar contra a poluição e queria um jato para ir ao Himalaia, “onde, dizem, tem um campo de pouso para discos voadores”.
Caetano Veloso voltou do exílio em Londres, durante a ditadura militar, e foi matar a saudade de Maria Bethânia, que morava em Ipanema. A cantora fez questão de levar o irmão para passear na sua motocicleta Yamaha, apelidada de Honey Baby em alusão a um verso da música “Vapor barato”, de Jards Macalé e Wally Salomão. Era o início de um ano definidor para ambos os fihos de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Em 1972, Caetano lançou o icônico álbum “Transa”, gravado no exílio, e teve seu primeiro filho, Moreno Veloso. Já Bethânia fez sua primeira turnê internacional e gravou um de seus discos mais importantes, “Drama — Anjo exterminado”, produzido por Caetano. A Honey Baby, porém, teve que ser vendida. Dona Canô, a matriarca da família, tinha pavor de moto.
Raul Seixas surfava no sucesso de seu disco “Krig-há, Bandolo!”, lançado em meados em 1973, quando foi fotografado pelo jornal fazendo um protesto contra a poluição. Ele deixou seu carro de lado e saiu pedalando no trânsito da Zona Sul do Rio. Um visionário militando contra a emissão de gases do efeito estufa muito antes das mudanças climáticas. Numa entrevista sobre o álbum, recheado de hits como "Mosca na sopa" e "Metamorfose ambulante", Raulzito disse que tinha entendido o sentido da vida. Contou que fazia parte de uma sociedade de pessoas despertas que se comunicavam de várias maneiras. "Os caretas estão loucos, perderam o jeito, estão tropeçando a todo instante".
Elza Soares era matriarca de uma família com 22 pessoas quando lançou o disco "Lição de vida", em 1976. Ela morava numa casa em Jacarepaguá com o então marido, Mané Garrincha, os filhos dela, os filhos dele e o pequeno Garrinchinha, fruto do casamento da diva do samba com o ex-craque de futebol. Àquela altura, Elza tinha superado abusos e miséria na infância, além de muitas dificuldades da vida adulta, para se estabelecer como cantora. Mesmo assim, tinha de lidar com preconceito. “O título desse disco vem a calhar com tudo que passei", disse a artista. "Pelo sofrimento que vivi, eu poderia ser diferente. Mas passei a respeitar mais a vida. Hoje, sou uma mulher otimista”.
O sambista Martinho da Vila tinha 29 anos, e era terceiro-sargento do Exército, quando deu uma entrevista para O GLOBO, em 1969. Ele trabalhava como escrevente da Diretoria de Engenharia da corporação, mas já vinha ganhando fama graças a sucessos como “Casa de bamba” e “Pequeno burguês”. Na conversa com a equipe do jornal, diante do Palácio Duque de Caxias, no Centro do Rio, o artista estava preste a disputar a final do IV Festival Internacional da Canção (FIC) com a música "Madrugada, carnaval e chuva". Martinho avisou que estava deixando a vida de militar para se dedicar exclusivamente ao samba. “Não me sinto bem de uniforme, morou?”
Rita Lee estava no Rio para se apresentar no Hollywood Rock, festival produzido por Nelson Motta em janeiro de 1975. Na véspera daquele show histórico, a diva do rock nacional posou para um ensaio de fotos que, por algum motivo desconhecido, não foi publicado na época. As imagens permaneceram esquecidas durante décadas até que, depois da morte da cantora, em maio de 2023, a equipe do Acervo O GLOBO encontrou esse tesouro nos arquivos do jornal (veja mais imagens aqui). Na época das fotos, Rita estava a meses de lançar "Fruto Proibido", seu segundo disco com a banda Tutti Frutti, repleto de hits como "Agora só falta você", "Esse tal de roque enrow" e "Ovelha negra".
Pouco depois de dar o que falar com uma série de shows na casa noturna Jazzmania, em setembro de 1987, Marisa Monte encontrou a equipe do GLOBO para falar de sua carreira, dias antes de começar uma nova temporada, na Casa de Cultura Laura Alvim, no mesmo bairro de Ipanema. A artista de então 20 anos morava na Urca, onde foi clicada a foto acima, e não se mostrava deslumbrada com o sucesso rápido que conquistara. "Não espero nada, estou feliz hoje. Talvez este seja o segredo. Cheguei até aqui dando passos do tamanho das minhas pernas", disse a cantora, que ainda não compunha, mas só incluía no repertório aquilo que gostava de ouvir, como Chico Buarque, Tim Maia, Rita Lee e Marvin Gaye. "O importante é ser fiel a si mesmo e não atropelar as coisas".
Em 1977, Milton Nascimento queria fazer um pequeno show ao ar livre em Três Pontas, no interior de Minas Gerais, onde ele passou a infância. Mas a notícia se espalhou, e cerca de 10 mil pessoas apareceram para vê-lo cantar ao lado de Chico Buarque, Fafá de Belém, Clementina de Jesus, Francis Hime, Gonzaguinha e outras feras. A emoção no rosto de Milton era visível. O cantor se mudou do Rio para Três Pontas com a família que o adotou depois da morte de sua mãe biológica, quando ele tinha 2 anos de idade. Aos 35 anos, o astro da MPB quis fazer uma apresentação na cidade onde cresceu. Na crônica sobre aquele dia, Nelson Motta escreveu que Milton não deu conta da emoção: tomou um porre, cantou de língua enrolada, esqueceu letras e arranjos, mas foi um "espetáculo lindo".
Lulu Santos estava assim, de short e sem camisa, em seu apartamento na Lagoa, no Rio, quando posou para as lentes do fotógrafo Chiquito Chaves durante uma entrevista sobre o seu segundo disco, “O ritmo do momento”. Lançado em 1983, na esteira do sucesso de "Tempos Modernos", o álbum tinha hits como "Um certo alguém" e "Como uma onda (zen surfismo)". “É através da música que sinto a unificação do país. O que eu curto é levar entretenimento”, disse o cantor, que vinha fazendo shows para multidões no Brasil. "É uma loucura tocar para 30 mil pessoas. A plateia assume a forma de um bicho, que pode te acompanhar, curtindo junto, ou te dar um peteleco".
Bob Marley fez uma única visita ao Brasil, em março de 1980, quanto veio ao Rio para prestigiar a festa de lançamento da gravadora Ariola. A lenda do reggae jamaicano não fez nenhum show, mas deu o ar de sua graça jogando futebol no campo do Polytheama, time do compositor Chico Buarque, na Barra da Tijuca. Na "pelada", também estavam Moraes Moreira, Toquinho e o craque Paulo Cézar Caju. Marley não mostrou lá muita intimidade com a bola, mas fez um gol na vitória de 3 a 0 de sua equipe. O cantor não fez nenhum show no país, mas comprou instrumentos como atabaques, maracas e uma cuíca usada na gravação original do clássico "Could you be loved", do álbum "Uprising".